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O tempo não é linha reta: é rede, é nó, é trama compartilhada!

Toda história é um tecido, feita de linhas que se entrecruzam, de fios que se encontram e se desencontram, de memórias que, mesmo quando parecem esquecidas, seguem bordando o que somos e o que podemos ser. A exposição Fios da Memória: Vozes das Mulheres de Rubim convida você a caminhar por essas costuras — tramas de vida que se  revelam, nas vozes de mulheres do município de Rubim, no Vale do Jequitinhonha, um olhar profundo sobre o tempo, o território e o lugar que cada uma delas ocupa.

A iniciativa nasceu do desejo de registrar e dar visibilidade às memórias de mulheres que viveram em alguma fase de suas vidas na cidade de Rubim. Realizada pela Organização Social Vokuim, a exposição é resultado de um trabalho do Núcleo iniciado na formação do programa Seja um Núcleo do Museu da Pessoa em  2023. Ao todo, foram ouvidas 10 mulheres, cujas trajetórias atravessam décadas e contextos: dos anos 1920 até 1997, com  idades que vão dos 28 aos 90 anos, distintos níveis de escolaridade, níveis econômicos e sociais, múltiplas vivências de classe.

Cada relato é um fio que revela as encruzilhadas entre o trabalho e a infância, os afetos e as ausências, as possibilidades e as restrições que marcaram suas vidas. Muitas dessas histórias falam de migração, de partidas e de permanências; de ofícios que se aprendeu ainda criança; de afetos tecidos em família, no roçado, nas escolas, nas ruas e em espaços onde o cotidiano esbarra nas desigualdades que atravessam gênero, raça e classe social.

A exposição se organiza em três recortes temáticos: Infâncias, Ofícios e Afetos. Cada um deles aponta caminhos para pensar como o tempo e o espaço criam bordados nas vidas dessas mulheres. São histórias que mostram o trabalho como necessidade, as infâncias como espaço de aprendizado e resistência, os afetos como fios que sustentam e atravessam as distâncias e as mudanças.

As vozes que aqui ecoam são mais que lembranças — são registros vivos de um jeito de existir que desafia o silêncio e transforma a memória em patrimônio, não como passado encerrado, mas como matéria viva que compõe o presente e que seguirá tecendo o futuro.

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Infâncias

Quando se fala em infância, é comum que o pensamento caminhe para imagens de liberdade, de brincadeiras ao ar livre e da leveza que se espera dessa etapa da vida. Em cidades como Rubim e nas roças que cercavam seu território, as memórias das mulheres entrevistadas revelam um cotidiano em que brincar era um ato de resistência e de criação, inventado nas brechas do tempo, entre as condições de vida e o trabalho.

Os brinquedos, muitas vezes, surgiam da terra, das mãos criativas, da imaginação. Espigas de milho se transformavam em bonecas. Folhas, gravetos e tampinhas viravam carrinhos, casinhas e enfeites. Brinquedos comprados eram raridade, e o valor da infância se media pelo que se podia inventar, partilhar, geração após geração.

As ruas, quintais e terreiros foram cenário para brincadeiras que viajavam de boca em boca: passa anel, queimada, pique-esconde, bola de gude, cair no poço, boizinho de janeiro, rouba-bandeira. Pequenas festas e folguedos populares também faziam parte desse tecido social, onde as crianças criavam laços com o lugar, umas com as outras e com o tempo.

Mas nem todas as infâncias puderam ser vividas. Para muitas, o brincar cedeu espaço trabalho.  Antes mesmo de terminar o tempo de escola — ou sem sequer ter tempo de escola — meninas e meninos assumiam tarefas em casa, nas roças ou nas casas de outras famílias. Lavar, cozinhar, costurar, cuidar de hortas e quintais, torrar e pilar café, colher alimentos, ajudar nos plantios e em todas as lidas que lhes garantisse o sustento.

A depender da posição social e econômica, o tempo da infância foi vivenciado de formas muito diferentes. A diversidade dessas vivências revela um tecido de desigualdades e também de afetos, solidariedades e resistências. Algumas brincaram até quando puderam, outras aprenderam cedo que ser criança era, também, carregar pesos que não cabiam na idade.

Nas palavras de Dona Maria, o tempo de infância não chegou a se cumprir:

"Aí quando eu fui ficando mocinha, de nove anos, eu já não tive mais infância, foi pesado trabalhar, pra ajudar pai e mãe, que era doente. A gente torrava café, moía o café, matava o porco, cortava o toucinho, fritava tudo, lavava roupa, encerava casa... Eu nunca tive uma infância. Porque minha infância foi trabalhar."

Falar de infâncias, no plural, é reconhecer que elas não cabem em um só molde. Que cada memória é uma linha que se cruza com outras tantas — umas marcadas pelo tempo de brincar, outras atravessadas pelo trabalho, todas costuradas pelo contexto social em que nasceram. Nesta exposição, cada voz convida quem escuta a repensar o que se entende por infância — não como um tempo universal, mas como um território atravessado por classe, gênero, cor, acesso à escola e pelas condições de vida que moldam o que cada menina e menino pôde ou não viver.

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Afetos

Falar de afetos é falar de memórias. É olhar para dentro de uma vida, e perceber que os sentimentos que atravessam uma pessoa nem sempre cabem em palavras. Cada lembrança carrega marcas de encontros e desencontros, de presenças e ausências. O que a memória guarda nem sempre é o que o coração escolheu lembrar, mas aquilo que o tempo e as circunstâncias permitiram permanecer.

Os afetos, então, foram se moldando entre o que se queria e o que era possível. Para algumas, o casamento foi parte especial da vida, costurado ao dia a dia, às tarefas partilhadas, aos desafios de criar uma família. Para outras, o casamento foi o início de uma vida de silêncio e de peso, marcada por desigualdades que começaram muito antes, nos limites que o lugar, a classe social e a escolaridade impuseram. Nesses caminhos, o afeto nem sempre teve espaço para crescer, mas sempre encontrou formas de resistir.

Filhos e netos ampliaram essas tramas, criando novas rotas para os sentimentos, mesmo quando as relações amorosas se desmancharam. Laços afetivos foram sendo cultivados e reinventados, em meio a desafios que a vida impôs sem pedir permissão. A experiência de cada mulher revela que o amor, o cuidado, a ternura, a saudade e a dor nunca são sentimentos isolados. 

Ao revisitar essas histórias, a Museologia Social propõe olhar os afetos não apenas como algo íntimo, mas como uma experiência coletiva, moldada por tempos, territórios e desigualdades. Cada mulher entrevistada reconstrói sua narrativa de afetos a partir das escolhas que lhe foram possíveis, e também das que lhe foram negadas.

Falar de afetos é, assim, reconhecer que cada vida carrega não apenas sentimentos, mas também as marcas de uma sociedade que organiza o amor, o casamento e a família conforme as regras de classe, de gênero e de território. Entre lembranças doces e feridas que o tempo não apaga, cada história mostra que afetos não nascem soltos: eles são tecidos, dia após dia, no ritmo que o mundo permite.

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Ofícios

Os ofícios carregam as marcas do tempo, da necessidade e das escolhas que, muitas vezes, não estavam nas mãos de quem as viveu. No percurso dessas mulheres, o trabalho sempre esteve presente, seja dentro de casa, seja nas ruas, nas feiras, nas fábricas ou nas escolas. O ofício foi o que garantiu o sustento, o que abriu caminhos para pequenas conquistas, o que traduziu, muitas vezes, o desejo de autonomia.

Entre as mulheres ouvidas, as histórias se cruzam em diferentes ocupações: professoras, babás, empregadas domésticas, costureiras, vendedoras, balconistas, cantineiras, quitandeiras, artistas, sindicalistas e tantas outras funções que raramente cabem nos registros oficiais. O que une essas trajetórias não é só o trabalho em si, mas as condições em que ele se deu. A escolaridade incompleta, as jornadas duplas e triplas, a divisão desigual do cuidado e a urgência de colocar comida na mesa moldaram o jeito como cada uma se aproximou do seu ofício.

O universo doméstico, muitas vezes, foi o ponto de partida. Aprender a costurar, bordar, fazer crochê ou tricô era um saber que passava de geração em geração, dentro das casas, entre mães, avós, filhas. Algumas transformaram essas habilidades em trabalho remunerado, equilibrando as demandas do lar com as exigências do mercado. Outras mantiveram esses saberes como prática de cuidado, de troca, de expressão pessoal. A produção de quitutes, a venda de produtos de beleza, os trabalhos manuais — todos esses caminhos revelam que o trabalho feminino sempre esteve aquém da formalidade e das carteiras assinadas.

O ofício não foi só uma forma de garantir renda. Foi também uma maneira de afirmar presença no mundo. Mesmo quando o trabalho era invisível, feito dentro de casa, sem salário ou descanso, ele sustentava a vida de muitas famílias. E quando o ofício se deslocava para fora do espaço doméstico, ele carregava junto as marcas do lugar social que essas mulheres ocupavam: a falta de estudo, o transporte precário, a ausência de direitos trabalhistas.

Para muitas, o trabalho foi escolha possível diante de um conjunto de limitações. Para outras, foi o meio de criar uma rede de apoio e de resistência, construindo saberes coletivos e formas de organização. Os ofícios, em suas múltiplas faces, revelam como as mulheres sempre buscaram estratégias para viver com dignidade, mesmo quando as condições não eram favoráveis.

A Museologia Social reconhece nesses relatos não só as ocupações em si, mas o valor das experiências, o saber que nasce da prática e a força coletiva que sustenta essas trajetórias. Ao dar voz a essas histórias, o que se revela é que o trabalho não é apenas meio de subsistência: é também forma de se inscrever no tempo, de produzir memória e de manter vivas as tramas de solidariedade que atravessam gerações.

Cristiane Gavião
38:47
Celina Areas
01:30:51
Clebia Vargas
42:40
Dona Zai
01:37:56
Efigênia
20:41
Ilma Maria Pereira
32:31
Lavínia
34:19
Maria Aguiar
37:41
Maria Deldy
40:25
Sílvia Gonzaga
01:08:57

Ficha técnica

Realização: Organização Social Vokuim

Concepção: Núcleo de Memória Vokuim

Produção Executiva: Alba Dutra

Direção Audiovisual: Rangel Moreira

Curadoria: Alba Dutra e Soraia F. Dutra

Identidade Visual: Jéssica Kawaguiski

Bordados e Edição de Imagens: Jéssica Kawaguiski

Projeto Expográfico: Jéssica Kawaguiski e Mayra Carvalho

Montagem da Exposição Virtual: Mayra Carvalho

Transcrições: Lume Dutra e Soraia F. Dutra

Revisão: Gaby Almeida Costa

Tecnologias: Wendio C. Santos

Recortes Audiovisuais: Felipe Cecil

Consultoria: Sofia Patajós

Assessoria de Comunicação: João Pedro P. Rezende, Mayra Carvalho e

Sabrina Garcia

Fotografias: Acervo pessoal das entrevistadas e Rangel Moreira

Trilha Sonora: Wilson Dias

Local: www.vokuim.org.br

Ano de projeto: 2025

Núcleo de Memória Vokuim

 

A Organização Social Vokuim, com sede no Vale do Jequitinhonha (MG) foi certificada como ponto de Memória em 2023, pelo IBRAM. A  iniciativa do Ponto de Memória surgiu da necessidade de fortalecer a cultura popular por meio da salvaguarda da memória e do patrimônio cultural da região. A ausência de políticas públicas locais que atendessem às demandas de grupos, coletivos e agentes culturais, bem como sua proteção e articulação foi uma das razões que levou a entidade a buscar meios e condições para preservar a memória e o patrimônio cultural do território. Além das atividades de revitalização das vestimentas e indumentárias dos integrantes das Folias de Reis locais, nas ações voltadas para a preservação, o Ponto produziu em 2014 o documentário Os meninos e o boi, com 30’ de duração, que apresenta a Folia de Reis, os personagens e a brincadeira do Boi de Janeiro da cidade de Rubim, por meio de imagens e depoimentos de membros das duas folias da cidade.  Em 2015 publicou o livro: Folias da cultura: memória de percurso – um relato da trajetória do Ponto de Cultura Folias da Cultura e da memória histórico cultural da cidade. Constituiu um acervo sobre a Folia de Reis e a festa do Boi de Janeiro registrando essa manifestação e incentivando sua permanência e também um acervo digital de fotos e vídeos, disponibilizados nos meios digitais. Como produto da realização dos microprojetos de cultura realizado por meio da Lei Aldir Blanc, produziu em 2021 a série Raízes, uma Websérie documental que conta a história de mestres do ofício da região do Jequitinhonha, realizada como forma de apresentar talentos tradicionais da terra. A Websérie Raízes foi disponibilizada nas redes sociais da Vokuim em capítulos, com uma chamada semanal no mesmo dia e horário e atingiu milhares de visualizações. Cada capítulo da Websérie narra trajetórias e fazeres de mestres de ofício, artistas e artesãos da região.  O ponto de memória atua por meio de uma abordagem colaborativa e em parceria com outras entidades, a organização oferece oportunidades de formação cidadã e técnica, promovendo a solidariedade e a diversidade cultural. Integrou a Rede de Patrimônio Criativo e Colaborativo da Agência de Iniciativas Cidadãs - AIC que formou, em 2022/2023, 28 jovens e adolescentes em duas frentes: a de Educação Patrimonial e Educomunicação. Em 2023, a Vokuim passou a integrar a rede de Núcleos Museu da Pessoa, uma rede de organizações que promovem ações locais e contínuas de produção, preservação e disseminação de histórias de vidas. 

Por entender que  memória de um território é tecida pelas experiências, afetos, saberes e fazeres de quem o habita, a Vokuim aderiu ao programa de qualificação “Seja um Núcleo” do Museu da Pessoa — um museu virtual e colaborativo, que há anos transforma histórias de vida em patrimônio da humanidade. Ao oportunizar à sua equipe uma formação em tecnologia social da memória a Vokuim buscava se qualificar e dar continuidade a uma jornada que fortalece sua missão de valorizar as narrativas locais, preservando e compartilhando as memórias que constroem a identidade de Rubim e do seu povo. A participação de sua equipe no curso Tecnologia Social da Memória possibilitou o uso de  ferramentas para a coleta, organização e difusão de histórias de vida, de maneira ética, afetiva e comunitária.

Mais do que apenas guardar registros, ser um Núcleo de Memória significa se responsabilizar localmente pela democratização da memória social, promovendo ações que envolvam a comunidade, conectando gerações e realçando as vozes que muitas vezes ficam à margem da história oficial. A Vokuim, desde sua fundação, acredita no poder das histórias e na força da cultura popular como pilares de cidadania, e o Núcleo de Memória vem para somar e aprofundar essa trajetória.

E foi dessa caminhada que nasceu o presente trabalho: “Fios da Memória: Vozes das Mulheres de Rubim”, uma exposição virtual que dá visibilidade às trajetórias de mulheres que carregam, em suas vivências, a memória viva da cidade de Rubim, no Vale do Jequitinhonha. A mostra reúne histórias de 10 mulheres, nascidas entre 1920 e 1997, de diferentes origens sociais, econômicas e níveis de escolarização, e que compartilham suas experiências sobre temas como infância, ofícios e afetos.

A exposição, hospedada no site da Vokuim, traz uma curadoria cuidadosa que se materializa em documentários, textos, trilhas sonoras e fotografias, compondo um espaço virtual afetivo, sensível e aberto para o público. “Fios da Memória” é mais do que um projeto expositivo; é um convite para ouvir, valorizar e reconhecer as histórias de vida como parte fundamental da construção do nosso patrimônio imaterial.

Esta exposição reflete o desejo das integrantes do Núcleo de Memória da Vokuim, em dar visibilidade a personagens que poderiam passar anônimas pela história oficial, mas que fazem toda a diferença nas histórias de vida comunitária e conformam o tecido cultural local.  O resultado da exposição reflete o compromisso com a preservação e difusão da memória social do território, sempre com o olhar atento e aberto à diversidade de vozes que dão vida à sua história.

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